Satoru Konno era um garoto disciplinado e inteligente, vivia para os estudos. Bem centrado, almejava seguir carreira de engenheiro aeronáutico e viajar para seu país de origem. Os pais, Hiroshi e Fuyuki, se orgulhavam das excelentes notas de seu único filho, que cursava a quinta série. De fato uma família rara e de convivência invejável, em doze anos de casamento nunca houve uma briga séria.
A rotina matinal de Satoru era acordar todos os dias antes da alvorada, se arrumar e ir ao colégio Escola Viva, que se localizava á três quadras de sua moradia. Pelo caminho o garoto encontrava vários outros alunos, porém não gostava de nenhum deles. Tinha uma imensa dificuldade em fazer amigos por conta de sua descendência nipônica e com freqüência se tornava alvo de zombarias pelo nome estrangeiro. Além disso, talvez sua maturidade e natureza séria também afastassem-no dos outros meninos, no entanto isso não seria incômodo para ele.
A família Konno era bem sucedida nas finanças, morava num apartamento luxuoso na Vila Olímpia, um bairro famoso da zona oeste de São Paulo. Hiroshi Konno ocupava um bom cargo na Symantec, era programador de softwares. Quanto á Fuyuki, administrava a mesma empresa. O salário de ambos era mais que suficiente para atender todos os caprichos familiares e ainda bancar os estudos do garoto.
Um casal católico, seguia assiduamente os costumes da igreja. Sempre compareciam ás missas de domingo. Toda páscoa se reuniam para a celebração e comiam ovos de chocolate. Na quaresma oravam e ofereciam esmolas aos indigentes. É evidente que naquela noite não seria diferente.
Era um domingo e eles estavam em casa. Cristina, a empregada doméstica, passara parte da tarde montando o belíssimo pinheiro artificial que iluminaria a madrugada. Inúmeros pisca-piscas adornavam o ambiente, a guirlanda foi posta no lado de fora da porta e a mesa era exageradamente farta. Ainda faltavam duas horas e alguns minutos para a meia noite – horário em que seria permitido comer – Satoru, assim como qualquer criança de sua idade, mal podia esperar para tocar a sobremesa, um pavê de morangos com suspiros que Cristina preparara reclamando.
– Isso eu fiz pra depois da ceia, menino! – a empregada o repreendia diversas vezes durante a noite. O garoto consentia com a cabeça e se controlava para não avançar sobre o doce antes da hora.
Hiroshi procurava na mini-adega por champanhes de qualidade, queria brindar por mais um natal feliz comemorado em família. Olhou alguns instantes mas, analisando bem, percebera que não havia nada de seu gosto.
– Irei ao mercado comprar bebida, volto logo. – disse o pai, passando a mão na cintura e retirando do bolso a chave do carro importado. A empregada se manifestou ante a atitude do patrão. – Não se preocupe, senhor, deixe que eu mesma vou até lá e trago o champanhe.
– Não, Cristina. – Retrucou ele, já de saída. – É perigoso andar sozinha á essa hora, e você já fez muito por hoje, está na hora de um de nós demonstrar alguma gratidão por isso.
Cristina era uma garota jovem, com dezenove anos, de olhos claros e cabelos lisos. Não sabia lidar com elogios, tampouco críticas, mas ainda sim gostava de ser prestativa em tudo independente do dinheiro. Ficara de face rubra ao perceber o sutil sorriso do patrão para ela.
– Pai! Pai! – Exclamou Satoru antes que Hiroshi tivesse chance de fechar a porta. – Posso ir com o senhor?
– Não, filho, voltarei rápido, espere aí com sua mãe e Cristina. – o garoto tornou a face numa carranca de lamúria, mas não chorou. – Até daqui a pouco. – o pai fechou a porta da sala e saiu até o estacionamento. Mas aquela noite Hiroshi não voltara para casa, fora a última vez que Satoru viu seu pai.
Na manhã sucessora ao desaparecimento do senhor Konno, sua esposa Fuyuki recebera a notícia da polícia sobre seu marido. O que temíamos aconteceu. O corpo foi encontrado morto á facadas, boiando sob a ponte Engenheiro Ari Torres. Tal tragédia abalara a mãe de forma que esta acabou entrando em profunda depressão. Não podia se deixar abater, pois teria de educar o filho sozinha.
Meses difíceis para o que restou da família Konno. Fuyuki passou a freqüentar um psiquiatra, sofria de insônia e era incapaz de se alimentar. Se forçasse ingerir algo, logo regurgitaria tudo. A falta de disposição e a constante visita ao doutor levou a viúva á perder o emprego, mas ela nem sequer chorou pelo trabalho, não tinha mais motivação para existir.
Cinco anos se passaram após a morte de Hiroshi. Estranhamente, o assassino nunca fora encontrado. Devido a ruína emocional de Fuyuki, Satoru teve de aprender a lidar com a decadência financeira. O apartamento luxuoso da Vila Olímpia fora vendido e, com o dinheiro, compraram um pequeno sobrado em Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo. Não tiveram escolha quanto á Cristina, despediram-na.
Graças ao apoio do filho, a mãe desamparada recuperou a motivação e superou a perda do marido. Aos poucos retomaram o controle de suas vidas, as dívidas foram pagas e Fuyuki, por incentivo de seu maturo filho, passou a sair á procura de um novo amor. Desta forma, Lúcio Amaro cruzara sua existência.
Embora Satoru já estivesse acostumado com a freqüente presença do futuro padrasto em sua casa, as noites de natal nunca mais seriam como de costume. Aquela era a primeira noite natalina em que Lúcio passaria junto á eles, o rapazote louro provia de um brilho acentuado no olhar cor de mar. Chovia forte durante o entardecer, a nostalgia invadiu o quarto de Satoru. Sua mente passava uma retrospectiva dos acontecimentos do natal de cinco anos atrás.
O rapaz jazia na cama, encolhido sob as cobertas. Não tinha ânimo para descer á cozinha e comemorar aquela noite, não via motivos para isso. Pela janela observava os relâmpagos assustadores que a tempestade trazia. Tentou dormir, quase pegava no sono, mas um raio caíra perto e fê-lo abrir os olhos espantado. A luz do abajur se apagou, a casa ficara sem energia elétrica.
“Mal presságio”, pensou Satoru. Um leve receio importunou-o, até decidir ir buscar o abraço da mãe. Desceu do leito e rumou á cozinha. Os trovões intensificavam á cada momento. Ao cruzar o corredor até as escadas, ouviu um grito esganiçado. “Mamãe!”. O garoto passou pelos degraus em tropeços e, ao chegar na sala, defrontou uma grande sombra na janela. Um calafrio brotou em sua coluna, subindo até a nuca.
- Quem é você? – Gaguejou o jovem de dezessete anos. A sombra ficara muda. Os relâmpagos na noite chuvosa tornavam tal vulto ainda mais obscuro. Satoru tardou á aborda-lo novamente, ao qual lhe respondeu de rouca e sarcástica voz, – Eu sou o Papai Noel. – seguida duma gargalhada sinistra.
Um brilho prateado fora reconhecido em meio a escuridão, a sombra empunhava uma faca. Em pânico, o garoto correu sem direção pela casa. Onde estavam a mãe e Lúcio? Ele não sabia. Foi encurralado na cozinha, tentou sair pela porta dos fundos, mas estava trancada. Pensou em se esconder sob da mesa, seus olhos vertiam lágrimas de desespero. Ao levantar a toalha para entrar no esconderijo improvisado, levou outro susto, ainda pior. Encontrara Lúcio e sua mãe, ambos mutilados pela faca da sombra demoníaca, o sangue de ambos espargia por toda a parte.
O monstro finalmente alcançara Satoru, agarrando-o pelos braços. Não compreendia o motivo da carnificina insana, mas o pavor era tanto que as palavras todas fugiam. Ante o choro mudo do garoto, a sombra comentou. – Sua mãe é uma traidora e mereceu a morte. O homem junto á ela é um oportunista e também mereceu a morte. Quanto a você, meu filho, incentivou toda a traição, portanto também morrerá.
A tempestade cessou e o luar iluminou os sapatinhos na janela, a guirlanda presa á porta, os presentes sob o pinheiro artificial e os corpos estripados, besuntados em sangue. A brisa pós chuva era fresca e balançava os sinos dourados nas casas vizinhas, enquanto o relógio marcava cinco minutos para meia noite e as pessoas do mundo todo esperavam ansiosos para desejar um Feliz Natal.
(Samael, Lua Vermelha)
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
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